segunda-feira, maio 23, 2005

Livreiros de Calçada

Oi, Pessoas! Tudo bem?

Por aqui as coisas estão mais ou menos na mesma. Após dois dias chuvosos e nublados, o Sol voltou a dar (timidamente) as caras, e desde já estou torcendo para que o tempo continue firme no feriado, quando iremos para Angra dos Reis. E a greve dos órgãos subordinados ao Ministério da Cultura, como se sabe, também prossegue, sem previsão para voltarmos ao trabalho.

Confesso que tenho ido a poucas assembléias. Meu tempo é gasto com problemas domésticos (semana que vem, por exemplo, vão substituir uma parte do encanamento do meu condomínio, o que significa quebrar a parede do meu escritório - faço questão de estar presente!) -, com os cursos e a preparação do material que é usado neles, com a revisão de alguns contos e principalmente com leitura. Muita leitura, sem juízo de valor: todo tipo de livro, de ficção ou não, desde que me agrade. E alguns que se revelam um pouquinho chatos, também, mas que eu leio até o fim (sempre exercendo um dos mais sagrados direitos do leitor, que é o de pular páginas), porque sei que depois vou me desfazer do volume, e pelo menos quero saber como a história termina. Aliás, no momento estou com tantos livros em casa que adotei a estratégia de ler primeiro aqueles dos quais eu acho que vou abrir mão assim que terminar; às vezes eles me surpreendem e acabam ficando, mas as bolsas destinadas à Livraria Berinjela estão cada vez mais pesadas. E, como os livros que eu levo para lá não são vendidos, e sim trocados por outros... Bom, acho que isso é o que se pode chamar de Ciclo da Vida!

Hoje a dieta especialíssima desta "rata de biblioteca" foi acrescida em dois itens. Um deles é da área pedagógica, o outro é A Fantástica Volta ao Mundo, relato das viagens que o Zeca Camargo fez por conta do programa da Globo. Uma vista d'olhos deixou a impressão de que o livro é muito menos reflexivo e mais factual do que os de Airton Ortiz, e achei também que o visual, cheio de boxes e notas de pé de página, ficou meio carregado, ou poluído, como dizem meu cunhado e minha irmã, que são artistas gráficos. Mas deve ser um livro gostoso de ler, principalmente para os aficcionados de literatura de viagem. E, além de tudo, custou bem barato, porque é usado e foi comprado de um desses caras que vendem na rua.

Não sei se já contei para vocês, mas eu adoro esses vendedores de calçada. Onde quer que haja um, eu sempre paro, vejo o que ele tem para oferecer e, mesmo que não leve nada, sempre acabo puxando conversa. Meu favorito é o Adelmo, que faz ponto no Calçadão Cultural, na Rua Pedro Lessa (ao lado da Biblioteca Nacional), mas há outros muito bons no centro do Rio, sobretudo junto à estação Carioca do Metrô. Alguns deles foram entrevistados em uma matéria de jornal, O Globo se não me engano, e todos, sem exceção, desmentiram aquela velha idéia de que eles vendem livros assim como outras pessoas vendem bananas ou radinhos made in China. Um chegou a dizer que poderia ganhar mais se vendesse essas coisas, mas prefere trabalhar com livros, porque realmente gosta deles, ainda que tenha sido levado ao ramo por simples acaso. Outro (que eu julgo conhecer de vista, mas pela foto não posso ter certeza) disse que era analfabeto quando começou a vender livros, e que foi a partir daí que, aos 40 anos de idade, finalmente se sentiu motivado para aprender a ler. A essa altura eu, como provavelmente alguns de vocês agora, me perguntei se isso seria verdade ou se o vendedor exagerou um pouco os fatos, a fim de impressionar o repórter e garantir uma "vaga" na matéria. Mas em seguida me ocorreu outra pergunta, mais pertinente: que importância tem isso? Ficção ou não, é uma boa história... e capaz de inspirar bons pensamentos e boas ações, como deveriam ser os relatos de todas as vidas.

Já o vendedor de hoje, eu mal conheço. Seu "ponto" é aqui em Icaraí (o bairro de Niterói onde moro), e inclui não apenas um trecho de parede e calçada, mas a mala de um carro, em cujo assento ele fica lendo e fumando incessantemente nos intervalos entre um cliente e outro. Eu já havia comprado livros dele uma vez - uma História Ilustrada das Cruzadas e uma edição portuguesa de A Lei do Amor, de Laura Esquivel -, mas só hoje batemos um papo, alavancado pelo fato de eu estar examinando os livros da área de Educação. Ele perguntou se eu era professora e, quando eu lhe disse qual era a minha profissão, contou-me que também tinha estudado Biblioteconomia, lá em Volta Redonda.

Ué, mas a faculdade de lá tem graduação em Biblioteconomia?

Ah, não era faculdade não. Era um curso
, respondeu ele sem se enrolar; e, como para provar o que dizia, entrou a falar de como havia catalogado "toda a biblioteca daquela escola ali em frente". Falei do meu trabalho com manuscritos coloniais e ele afirmou, muito sério, que "o importante era fazer associações". E ainda perguntou se eu classifico usando aqueles números. Bom, faz tempo que não classifico nada, nem mesmo as histórias que as pessoas (eu inclusive) gostam de contar. Mas é claro que eu não disse isso, pois afinal nossa breve conversa acabou sendo muito agradável. E, além de conseguir os dois livros com um bom abatimento em relação ao preço inicial, ainda me despedi na invejável categoria de colega do ilustre senhor.

.......

Sem BN, talvez sem poder usar o micro de casa semana que vem (por causa da tal obra), ainda assim tentarei visitar os seus cantinhos. Não se esqueçam de mim!

Bom feriado!

Abraços a todos,

Ana Lúcia

segunda-feira, maio 16, 2005

Pé na Estrada com Airton Ortiz

Para que lugar do mundo você mandaria um amigo seu?

Para o Nepal, que é um país muito bacana.

E um inimigo?

O inimigo eu faria com que não viajasse. Faria com que ficasse em casa
.

Essa é uma amostra da filosofia e do estilo bem-humorado de Airton Ortiz, cujos livros Na estrada do Everest e Cruzando a última fronteira foram duas das melhores leituras que fiz nestes loooooooooongos dias de greve.

Como muitos de vocês já sabem, gosto muito de ler relatos de viagem, principalmente aquelas que têm como destino lugares considerados "exóticos" pela maioria de nós. Não precisa ser nenhum relato de pioneiro, de momentos dramáticos vividos por exploradores em mares ou montanhas. Aliás, até prefiro que não seja! Eu gosto mais daquelas narrativas de viagens feitas dentro do bom e velho espírito mochileiro, com o autor pegando carona na estrada, viajando em ônibus cheios de bodes e galinhas, experimentando as iguarias mais esquisitas e travando contato com pessoas bem diferentes das que costuma encontrar no seu dia-a-dia. Talvez seja o meu próprio espírito aventureiro, meio esquecido depois de vários anos de raízes plantadas, e agora um brotinho ainda muito tenro para cuidar. Ou talvez sejam as lembranças das minhas viagens, dos "perrengues" que eu e João já passamos, ficando sem teto em Minas Gerais, sem dinheiro em Roma, com o passaporte retido por um comissário de navio grego. Sei lá. Sei que, no caso dos relatos do Ortiz, também tem a ver com gostar de literatura, já que o autor gaúcho - que é ex-atleta profissional e jornalista, especializado em esportes radicais - escreve muito bem. Seu estilo é fluente, acessível, pontilhado aqui e ali por citações de outros amantes do inóspito (Thoreau, Jack London e outros mais) e, ainda, alguns rasgos de humor que me conquistaram como leitora. É o caso do encontro com dois outros viajantes, pai e filho, com quem ele tem de dividir um quarto em um albergue. Grandalhões e muito afáveis, os dois roncam a noite inteira como serrotes, e Airton Ortiz não hesita em encontrar um apelido perfeito para eles: o dos gigantes comilões (também pai e filho) de Rabelais, Gargântua e Pantagruel!

Esses dois livros que li tratam do Everest (as trilhas, não as escaladas) e dos territórios gelados do Alasca e de Yukon. Até onde sei, Ortiz escreveu mais duas obras, Pelos caminhos do Tibete e Aventura no topo da África, sobre uma expedição ao Kilimanjaro. Todos foram publicados na série Viagens Radicais da Editora Record. Informações sobre eles podem ser encontradas no site do autor , onde também estão os textos de Ortiz publicados na revista digital 360 graus. Como diria um outro esportista brasileiro... eu rrrecomeindo!

.....

Após a pausa para um copo d'água e um telefonema, reli o texto acima e fiquei feliz. Eu tinha pensado em falar sobre outras coisas: o valor ridículo que me propuseram para dar um curso, a ansiedade de esperar pela confirmação de outros, a greve que se prolonga por 44 dias, enfim, desabafos em geral. Mas quando comecei a falar de livros e de viagens entrei no embalo, e não só minha irritação se dissipou como acredito que tenha criado um texto bem mais agradável para vocês. Espero me lembrar disso sempre que sentar para escrever, pois afinal, se o que Pessoa disse é verdade - se o Sol doira sem Literatura - também é fato que, com ela, fica muito mais fácil enfrentar os dias cinzentos.

Abraços a todos,

Até a próxima!

Ana Lúcia

segunda-feira, maio 02, 2005

Eu, dos Contos de Fadas

Fui entrando devagarinho pelo portão gradeado, com a mochila no ombro, a capa de chuva escondendo os duendes na minha camiseta. No pátio, crianças brincavam de pique, e algumas delas se detiveram para me olhar, mas não por muito tempo. Era um lugar de constante entra-e-sai.

Posso ajudar, senhora? Um segurança.

Marquei com a Maria Lúcia.

Tudo bem. Passe na Recepção, por favor
, disse ele, apontando para o salão a cerca de 30 metros. Burocracia inevitável, mas até que eficaz: a sala da pessoa que eu procurava fica bem mais longe, e é melhor localizá-la primeiro, por telefone. De pé junto ao balcão, esperei alguns minutos até que a recepcionista acabasse de atender uma senhora e me olhasse com ar interrogativo.

Marquei com a Maria Lúcia, repeti. Sou a Ana Lúcia Merege.

Ah, sim... De onde?
, indagou ela, abrindo sem olhar uma página da agenda. Hesitei um segundo entre dizer "da Biblioteca Nacional" - que é o mais correto, mas que, naquele contexto, não faria muito sentido - ou "da Semana Literária", o que estava de acordo com o momento, mas podia se aplicar a diversas pessoas, esperadas para aquele dia e os subseqüentes. Então, eu tinha que me atribuir uma identidade inconfundível... e, nesse espírito, respirei fundo e mandei:

Ana Lúcia Merege, dos Contos de Fadas.

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Isso foi num colégio aqui de Niterói, ao qual me chamaram para bater um "papo de autor" com crianças da terceira e da quarta séries. Eu, meio apreensiva com o que ia acontecer, afinal iam ser quatro turmas por vez - mais de cem figurinhas - e não só eles não conheciam meus livros como estes, também, não são adequados a essa faixa etária, com possíveis (e raras) exceções. E eu saí da Escola Normal com a pecha de incapaz de manter o controle de classe. Caramba... Como eu ia me arranjar?

Mas tudo correu tão bem que até agora estou em estado de graça. Embora estivéssemos num auditório, sem chance de sentar em círculo e ficar mais próximos uns dos outros, não me colocaram numa posição inacessível, mas sim com um microfone sem fio, circulando no meio do pessoal. O tema do qual me pediram para falar, além dos meus livros - contos de fadas, é claro, destacando um pouco a figura de Andersen - não só é um dos meus preferidos mas permite criar muitas pontes com o pessoal mais novo. Especialmente a que usei para quebrar o gelo:

OK, então eu soube que vocês estão estudando contos de fadas... O que é um conto de fadas, afinal?

Silêncio, risadinhas, o teste de sempre, mas também mãos levantadas. Sussurros, aqui e ali. E logo - graças! - as primeiras vozes.

Tia! Tia! Ë uma história que tem fadas e bruxas!

É uma história inventada!

É uma história que tem magia!

Ah, é isso?
A deixa que eu esperava. Ah, então Harry Potter é conto de fadas? Tem magia...

Nãããão!

OK. Yu-Yu Hakusho, então.

Não!

Tia! Você vê isso?

Conto de fadas é uma história mais antiga. É do passado
, disse a inevitável gorduchinha de óculos. Oh, doce espelho da minha juventude!

Muito bem! Mas vocês sabem como, realmente, é antiga? Os contos de fadas existem há milênios, disse eu, fazendo aquele ar misterioso. E daí para a frente foi só desenrolar o novelo.

Ouso dizer que deu para falar de tudo: as mesmas coisas que falo para as pessoas que fazem meus cursos. Com outras palavras, é claro, e produzindo um sentido diferente, mas com a mesma essência. As crianças eram surpreendentemente perceptivas, quase todas muito espontâneas, e algumas das perguntas que fizeram foram uma grata oportunidade de partilhar um pouco do que sei e do que sou. Qual é meu livro preferido? Quem são meus escritores prediletos? Quem são meus escritores brasileiros prediletos? O que vou publicar agora? Eu incentivaria minha filha a escrever? Gostaria que um livro meu virasse novela? Escreveria um livro de Culinária?

Tá louco! Eu detesto cozinhar!, exclamei, sem deixar de sorrir. A pergunta não tinha um porquê, mas foi a única que ocorreu ao menino, e ele tinha que
fazer uma pergunta. Eu, que mais do que tudo receava o silêncio, encontrara um grupo ávido e generoso de interlocutores. E saí gratificada no final.

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Essa experiência não me sai da cabeça enquanto reviso minhas apostilas sobre leitura e bibliotecas escolares. Quando comecei a dar esse curso, a ênfase era no aspecto organizacional, e hoje é cada vez mais nas atividades de dinamização da leitura. Quase vinte anos depois, o círculo vai-se completando, e eu, que "fugi" da faculdade de Letras - e sobretudo da sala de aula - me vejo de volta, ansiosa por readquirir alguma prática.

Ou talvez não seja um círculo, mas uma espiral, e a menina que jamais soube "controlar uma classe" como professora retoma sua vocação sob o novo prisma de mediadora de leitura e contadora de histórias. Quem sabe?

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Abraços pra vocês,

Até a próxima!

Ana Lúcia